segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Depoimentos - parentes


A personalidade do nosso irmão Érico era caracterizada pela irreverência encravada em uma mente arguta.
Desde quando éramos crianças, ele já fazia brincadeiras e “artes” diferentes do padrão para aquela faixa etária. Talvez o fator genético tenha agido com rigor, pois nosso pai Erasmo, a quem reputávamos como um dos últimos humanistas do século passado, também era um irreverente, se bem que encaixado num figurino comportado.
Em sua busca incessante por novas experiências, na juventude Érico aproximou se das causas humanistas, abraçando utopias correntes naquela época. Enveredou pela política militante, acreditando que poderia melhorar a vida das pessoas mais simples; no entanto, não perdeu seu interesse pela arte, literatura e música, engajadas ou não.
Por conta desse perfil, nunca conseguiu ser um escolástico. Jamais se adaptou aos formalismos impostos pelas mais diversas escolas, rejeitava todas as etiquetas.
Quando casou-se ficamos perplexos pela concessão que fez aos costumes vigentes. Teve filhos, foi um bom pai, vertendo aí o seu veio de bondade e altruísmo.
Mas nunca teve interesse pelo acúmulo de bens; parecia viver num mundo alheio, no mundo que sonhava criar. Era uma pessoa que não se preocupava com as vaidades pessoais, e nem mesmo com sua saúde. Queria viver agitar a política e a cultura.
Quando houve o eclipse da democracia no Brasil, foi uma das vítimas da barbárie que acometeu o País. Ficou preso; sumiu do nosso convívio por vários meses, e só veio a aparecer num presídio político, onde com outros companheiros criou um ambiente fecundo para as idéias. Sofreu muito. Adquiriu marcas que certamente contribuíram para abreviar a sua vida.
Todavia, nunca perdeu suas características básicas; era tolerante com outras idéias e métodos. Discutia com seu irmão Cláudio, pois tinham uma maneira diferente de ver o mundo, a despeito de comungarem do mesmo objetivo de humanizá-lo.
Foi praticamente tirado a fórceps do mundo. Sua morte foi muito triste; de certa forma representou para nosso pai a primeira das suas mortes: em 1986, um desencantamento para o Prof. Erasmo que, fisicamente, morreu em 2001.
Quando olhamos para trás e pensamos nele, sentimos uma pitada gostosa de como era o mundo com utopias e esperança.
Obrigado Érico, você nos mostrou que vale a pena viver com intenção; que viver por viver é muito pobre.



Cláudio & Geraldo Mendes
(irmãos)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Esboço biográfico





Érico Vannucci Mendes nasceu em São Paulo, no dia 24 de junho de 1944. Era filho de Erasmo Garcia Mendes e Marta Ana Maria Vannucci; ele, então, professor assistente de fisiologia animal, ela graduada em história natural (no ano seguinte tornar-se-ia professora assistente de zoologia no) pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Os pais de Erasmo foram Odorico Mendes, médico pediatra, e Anna Garcia Mendes, professora primária.
Odorico e Anna (Fiúca) encontraram-se em Ribeirão Preto no começo do século 20, onde seus progenitores eram figuras de relevo.
Os pais de Marta eram italianos, como ela, vindos ao Brasil por razões políticas.
O pai, Dino Vannucci, formado em medicina em sua cidade natal (Florença), chegou a ser livre-docente de anatomia e se distinguiu na Itália e no Brasil como um brilhante cirurgião, ainda que parcialmente mutilado numa das mãos por um ferimento na 1ª guerra mundial. A mãe, France, era preceptora de línguas, visto que filha de francês (Oberlé) e de inglesa (Floyd); seu pai lecionava na academia militar florentina. Dino, desde a juventude, interessou-se pela política e, com o advento do fascismo, tornou-se um ativo militante da oposição a esse regime, a ponto de ter que se exilar da Itália, provavelmente em 1924. A família chegou pouco mais tarde (France e as filhas Marta e Mirella) para residir em São Paulo. Nesta cidade, Dino continuou na militância antifascista e sabe-se que enviava apreciável soma de dinheiro aos seus companheiros, exilados também, em outros países. Podia fazê-lo, pois, conceituado cirurgião, ganhava para tanto. Dino era também um cultor da história e das artes, sobretudo as que diziam respeito à sua distante e querida Florença.
Assim, além de publicações científicas no seu campo de atividade, deixou também obra histórica e de cunho literário.
Odorico, pai de Erasmo, era excelente pediatra e clínico geral; deixou inúmeros artigos publicados em jornais e revistas. Além disso, como Dino, tinha uma ótima cultura geral. Erasmo, mesmo sem entender muito (tinha 13 anos quando o pai morreu), sabia do nível cultural de Odorico. Desde cedo ouviu falar em casa da
Sorbonne e de celebridades como Einstein, Bergson, Freud, Marx e outros expoentes da intelectualidade mundial contemporânea. Fiúca, mãe de Erasmo, descendia de uma velha família, cujos ancestrais foram açoreanos que chegaram ao Brasil no começo do século XVIII. Radicados primeiramente em Minas Gerais, deram origem a uma descendência que inclui pioneiros colonizadores do Mato Grosso, os Garcias.
É provável que tenha sido esse background cultural dos progenitores e a inquebrantável fé socialista de
Erasmo que o aproximaram de Marta, quando a encontrou na Faculdade de Filosofia, pois, além de seus inegáveis atributos pessoais, ela era filha de um antifascista.
Ademais, havia a circunstância de ambos freqüentarem o mesmo departamento no curso de história natural daquela faculdade.
Assim, enamoraram-se e se casaram no fim de 1940, tendo Érico nascido quatro anos depois. Com um ano e meio de idade, Érico acompanhou seus pais, recém doutorados em ciências pela USP, aos Estados Unidos, onde iriam estagiar na Yale University e no Marine Biological Laboratory (em Woods Hole).
No retorno ao Brasil, em 1948, Erasmo e Marta separaram-se de comum acordo, tendo Érico ficado sob a guarda da mãe.
Em que exata medida essa separação terá influído em Érico é difícil precisar. Os pais fizeram o possível na circunstância. Embora muito rapidamente tivessem encontrado novos companheiros e constituído novos lares, empenharam-se para que a criança pudesse suportar as conseqüências de um lar desfeito, sobretudo a ausência do pai.
Este, nos primeiros anos que se seguiram à separação, deu ao filho uma assistência quase diária. Mas embora Érico jamais tenha questionado os pais sobre o assunto, é muito provável que tenha havido conseqüências.
Os reflexos da separação podem explicar parcialmente a vida de estudante secundarista até certo ponto tumultuada de Érico. Inteligente, era dispersivo, pouco objetivo e o pai costumava dizer-lhe, numa analogia futebolística, “que driblava muito bem, mas chutava mal a gol”. Terminado o secundário, Érico custou a ingressar no curso superior, em virtude precisamente dessa dispersão e, também, do início das preocupações sociais e culturais a que dedicou o resto da sua vida. Assim, conseguiu ingressar em 3 cursos da Faculdade de Filosofia da USP — ciências sociais, Geografia e Estudos Orientais (chinês) —, mas não concluiu nenhum. É que, nessa época, firmava-se nele a intenção de tornar-se um livre-atirador na promoção da cultura e na defesa dos direitos políticos e da cidadania, sobretudo das classes desfavorecidas.
Vem daí o seu interesse pela cultura e arte negras. Essa intenção explica, também, o ter-se dedicado à administração de cursos de madureza e de preparo para o ingresso nas universidades e, posteriormente, à assessoria administrativa do Museu Lasar Segall.
Neste último, promoveu, nos fins-de-semana, cursos de aprendizagem de artes plásticas para operários, com vistas ao lazer e à descoberta de novos talentos.
Durante a administração do prefeito Mário Covas, assessorou Gianfrancesco Guarnieri na Secretaria Municipal de Cultura.
Pouco antes de morrer, empenhou-se em projetos culturais em Curitiba e Cuiabá, amparados pelas prefeituras locais, que buscavam o aproveitamento de circos como espaços culturais.
A vida de Érico como ativista político continua, em boa parte, enigmática para seus familiares. Ao pai, bastante politizado, nunca se declarou abertamente comunista, mas nutria simpatia pelo regime de Castro. Quando prestou serviço militar, em Quitaúna, sua companhia era comandada pelo lendário capitão Lamarca, por quem manifestou grande admiração. Durante o período da repressão pela ditadura militar, tornou-se ainda mais misterioso. Mas os pais sempre suspeitaram que andava envolvido com a “subversão”. De fato, em 1971 acabou preso pelos órgãos de segurança, sendo recolhido à Oban (Operação Bandeirante), onde foi torturado (nunca revelou o quanto), e em seguida ao DOPS e ao Presídio Tiradentes, onde aguardou julgamento por seis meses.
Do que o acusaram? De ter dado guarda a perigosos “subversivos”, companheiros de luta e jornada política.
Absolvido, retornou às suas atividades culturais. Pode-se apenas conjeturar o quanto a militância política do avô Dino Vannucci e do próprio pai, cujo esquerdismo o colocou contra o golpe de 64 desde o início, pesaram na decisão de Érico de ingressar na luta por dias melhores para o sofrido povo brasileiro.
Érico era casado com Dirce de Paula e Silva Mendes e deixou um filho, César, e duas filhas, Deborah e Paola. Faleceu no dia 13 de setembro de 1986, com 42 anos.



Erasmo Garcia Mendes
(pai)
1987