quinta-feira, 31 de julho de 2008

Prefácio - In memoriam





Pedir a uma mãe para escrever o prefácio de um livro em memória de seu adorado falecido filho, é justo, é belo, é chamá-lo de volta à vida que o abandonou há vinte anos. Mas, ao mesmo tempo, revelar sentimentos íntimos e tempos passados felizes e não, é profundamente doloroso. Sempre vivos os bons momentos e esquecidos os tristes; quanta amargura na lembrança, quantas saudades do tempo que foi. Volta à mente um episódio de um dia, quando o Érico, menino de seus seis ou sete anos, estava me esperando à saída da escola para juntos irmos para casa. Olhos fuzilantes, avermelhados pelas lágrimas retidas e dentes rangendo pela paixão mal controlada. Como de costume, abriu-se comigo falando “daquela professora ignorante...”. O caminho para casa era longo o suficiente para desabafar a raiva incontida e o desapontamento reprimido, e a criança pôde, então, relatar o fato do dia.A professora dera-lhe uma nota baixa porque a resposta não correspondia ao seu ensino. Érico retrucara, e creio que não foi calmamente, que ele tinha razão e era a professora quem estava errada. A injustiça era intolerável! Tive que concordar com Érico, pois a palavra “fecundação” é correta quer quando aplicada a vegetais, quer a animais, para a formação de um novo organismo com “pai e mãe” distintos. Na convivência com os pais, ambos licenciados, doutores e pesquisadores da USP, o menino tinha aprendido muitos fatos e, sobretudo, tinha o sentido da lógica e de seu uso na dialética científica a se formar no Érico de seu mundo interior. Foi difícil acalmar o menino Érico e convencê-lo que o mal-entendido derivava do erro fundamental de ter usado termos pouco ou mal definidos. Era preciso justificar o acontecido aproveitando da oportunidade para ensinar e salvar a figura da “ignorante” professora. Mais tarde, mestra e discípulo tornaram-se grandes amigos, mas permaneceu no espírito do Érico o ideal de dar guerra sem tréguas às injustiças do mundo. Esse episódio e inúmeros outros marcaram toda a vida de um raciocínio rebelde. A vida de Érico, filho de Erasmo Garcia Mendes, Professor de Fisiologia Animal da USP e criado no espírito eclético da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, foi a de um idealista que jamais esmoreceu em sua luta contra as injustiças revestidas e disfarçadas sob um manto de hipocrisias e subterfúgios. Ao longo de toda sua vida Érico leu, pensou, escreveu e agiu baseado na profunda e multivalente cultura que adquiriu e enriqueceu graças à imensa e incrível memória de que era dotado. Cresceu Érico com a determinação de contribuir para formar uma nação provida do vigor de um país multiétnico e para integrar as várias culturas e sabedorias, sem prepotências e substituições forçadas. Viveu Érico para os seus ideais de Justiça e Liberdade que nortearam toda sua vida pessoal e profissional e que, infelizmente, nunca poderiam ser alcançados, pois o mundo atual não é feito para a sobrevivência de almas puras e nobres. Ao terminar lembro-me da tragédia Prometeu acorrentado, de Ésquilo. Prometeu era o Titã que roubara o fogo dos deuses para doá-lo ao Homem. Prometeu desafia os deuses, apesar de saber que será duramente castigado. Consegue, porém, definir os limites de sua liberdade, e com isso, os limites da liberdade do Homem para que conviva numa vida social e ética. Os deuses olímpicos, por sua vez, são obrigados a aceitar e concordar com a aspiração de dignidade humana. Prometeu era uma das personagens da cultura da antiga Grécia que aparecia mais freqüentemente nas longas conversas que tínhamos, Érico e eu, e que nunca foram encerradas. Essa foi uma das razões pelas quais instituí o Prêmio Érico Vannucci Mendes. Faço votos de que o fogo sagrado do Saber, da Sabedoria e do Bom Senso seja sempre levado adiante, e não só pelos homens de boa vontade, mas por todos os brasileiros de hoje e de amanhã.
Marta Vannucci
(mãe)

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